Em 2010, eu dava aulas na EM Professora Enir da Silva Pilan, em Tapiraí, interior de São Paulo, onde ficava a única classe de EJA em funcionamento no município. Na época, segundo a Fundação Seade, Tapiraí tinha uma taxa de analfabetismo de 14,73%. Nossa turma tinha 16 estudantes.
Meus alunos tinham idades entre 25 e 70 anos. 50% eram migrantes vindos da região Nordeste, que não puderam estudar quando criança. Boa parte deles precisava aprender a escrever os próprios nomes, pegar um ônibus, fazer cálculos simples, enfim, o básico para viver em sociedade. Outros tinham que terminar o Ensino Fundamental 1 para conseguir vaga no mercado de trabalho ou concluir os estudos até o 9º ano para prestar concursos públicos. E havia, ainda, alguns que queriam chegar à faculdade.
Na alfabetização, planejava abordagens diferenciadas conforme o nível de aprendizagem de cada grupo. Em minhas aulas, as atividades permanentes de escrita e leitura eram sempre voltadas a temas que tinham ligação com a realidade dos alunos, como direitos humanos e legislação, saúde, economia doméstica, meio ambiente, cultura brasileira e muito mais.
Parece pouco importante, mas fugir da infantilização e trabalhar temas significativos é um dos fatores decisivos para não haver evasões. Para que o aluno da EJA aprenda e permaneça na escola, é preciso que as aulas tenham um sentido, um “aprender para”. Os temas abordados devem fazer parte da vida real, assim como os gêneros e modelos de texto.
Foi pensando nisso que criei o projeto de um jornal da turma. Esse veículo pode ser um ótimo mediador entre a escola e o mundo. Além de possibilitar a exploração de vários gêneros jornalísticos, como reportagem e artigo de opinião, também serve de suporte para outros tipos de texto, como receitas, poemas etc. E tudo isso com uma função social clara, que é informar.
O projeto aconteceu no final do segundo semestre, entre setembro e dezembro de 2010, com pelo menos duas atividades por semana. Tudo foi desenvolvido em dez passos:
1º passo - Planejamento: É sempre importante reforçar a experiência com uma base teórica. Por isso, a primeira coisa que fiz foi estudar. Li dois livros: Para Ler e Fazer o Jornal na Sala de Aula, de Maria Alice Faria e Juvenal Zanchetta Jr, e Como Usar o Jornal na Sala de Aula, também de Maria Alice Faria. Li tudo sobre jornal escolar e conheci diversos modelos no Portal do Jornal Escolar, que você pode conhecer aqui. Esse site é uma fonte riquíssima de consulta e apoio ao professor.
Tirei dois aprendizados importantes. O primeiro é não fazer do jornal algo escolarizado. Os assuntos têm que ser reais, com uma função social verdadeira e um cuidado ético genuíno com o que vai ser veiculado. A segunda é não poluir a publicação om excesso de informação ou uma tipografia que não seja legível. O jornal tem que ter a cara dos alunos e ser a expressão do conhecimento deles.
2º passo – Conhecimentos prévios: Era preciso entender o que os alunos já sabiam. Em uma roda de conversa, descobri o óbvio: que eles não tinham acesso a esses materiais e, portanto, não sabiam bem do que se tratava. “O jornal traz notícias” e “jornal traz a verdade do acontecimento, do fato” foram algumas das falas que ouvi.
3º passo – Repertório: Trouxe para a sala diferentes jornais de grande circulação no país e na região: a Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Cruzeiro do Sul e alguns outros que tirei do Portal do Jornal Escolar. O objetivo era que os alunos identificassem as partes que compõem os jornais e os gêneros textuais presentes. Li algumas notícias e mostrei a eles que uma mesma história era apresentada de maneira diferente, em cada periódico. Foi bom debater sobre o mito da verdade publicada nos jornais.
4º passo – Primeiro contato: Trabalhamos leitura e interpretação de textos noticiosos. E foi interessante porque descobri que, muitas vezes, eles sabem ler, mas não compreendem o que está escrito. Como havia muitas palavras desconhecidas que dificultavam o entendimento, ofereci muitos dicionários e fiz atividades de interpretação oralmente.
5º passo – Nome e escopo do projeto: Era chegada a hora de começar para valer a produção do jornal! A turma aceitou o convite com empolgação, mas tinha receio de não conseguir. Expliquei que eles eram capazes de realizar a tarefa, já que há pouco tempo haviam lançado um livro de poesias da turma, o Poemas de Gente Crescida, que tinha ficado maravilhoso. Já mais convencidos e tranquilos, partimos para a escolha do nome do jornal. Eles deram várias sugestões e, por votação, escolheram A Força do Saber. Depois, passamos para outras discussões. Para quem eles iriam escrever? O que iriam escrever? Com esses questionamentos, os alunos tomaram a decisão de escrever para jovens e adultos da escola. Definimos juntos que o jornal teria um tema – meio ambiente e lixo – e que traria notícias, prestação de serviço, poemas e entrevistas.
6º passo – Mãos à obra: Dividi as tarefas entre três grupos. Um deveria pesquisar e escrever sobre atitudes das pessoas em relação ao lixo nas ruas e descobrir a quantidade de lixeiras pela cidade. O outro deveria investigar qual o destino do lixo no município e o uso de sacolas plásticas e ecológicas. Já o terceiro precisava descobrir se as pessoas do município sabem o que é lixo orgânico e o que elas fazem com os restos de comida. Enfim, os alunos se transformaram em repórteres. Em cada grupo, fiz intervenções perguntando o que não pode faltar naquele tipo de texto, quais as marcas textuais e se a produção estava clara e fácil de entender.
7º passo – Produções individuais: Os alunos definiram que o assunto da manchete principal do jornal seria o sumiço das lixeiras da cidade. Essa definição originou uma atividade bem interessante de escrita individual. Em uma reunião de pauta, meu aluno Aguinaldo Paulo contou que descobriu que havia uma única lixeira na pequena cidade, e resolveu entrevistar o comerciante que cuidava dela. Também elaboramos coletivamente uma entrevista que foi realizada com Ismael, o coveiro local. O personagem foi escolhido pela turma como uma pessoa de destaque em Tapiraí, e a conversa com ele foi emocionante e esclarecedora! E assim, pouco a pouco, nosso jornal foi tomando corpo.
8º passo – Escrita coletiva: Estávamos próximos do final e meus alunos já haviam se apropriado da maneira de expressar algo em um jornal. Como já não havia mais segredo, propus que escrevêssemos o editorial da publicação, explicando que ele seria a voz e o pensamento de toda a turma sobre a questão do lixo, tema principal da edição. Eles falaram e eu fui a escriba.
9º passo – Revisão final: Utilizando modelos de jornais do Portal do Jornal Escolar e o software Microsoft Publisher criei uma proposta de layout e, juntos, digitamos os textos, escolhemos cores, fontes, fotos e tudo o mais. Havia ficado tão bom que era difícil acreditar! Com a edição praticamente pronta no computador, fizemos uma leitura e pusemo-nos a questionar se a mensagem do jornal estava clara ou se algum texto poderia ter ficado melhor. Assim, fechamos o arquivo e mandamos imprimir 200 exemplares.
10º passo – Autoavaliação: Com o jornal em mãos, em uma roda de conversas, questionei meus alunos como foi para eles a participação no projeto, se as expectativas foram correspondidas e o que tinham aprendido naqueles meses intensos. Todos disseram ter gostado muito, estavam satisfeitos com o resultado e nem acreditavam no que tinham sido capazes de fazer. Tinham, ainda, compreendido a importância de um jornal em uma comunidade.
E assim, encerramos o trabalho. Minha avaliação sobre o projeto foi muito positiva. Afinal, meus alunos estavam escrevendo textos de autoria com qualidade, e alcançaram um resultado acima do esperado. O jornal ficou bem escrito, verdadeiro, com a expressão real dos estudantes.
A Força do Saber foi longe. Chegou até à diretora de Educação do município e ao prefeito. Ouvi muitas vezes as pessoas dizerem, surpresas: “Nossa! Foram eles mesmos que fizeram?” Valeu demais! Que saudades dos meus alunos da EJA! Cada turma, cada pessoa maravilhosa!
E para você que ficou curioso para ver o jornal, é só clicar aqui. Quem sabe esse meu relato não ajuda você a desenvolver um projeto assim com seus alunos, não importa em qual idade!
Um grande abraço e até a próxima segunda-feira!
Mara Mansani
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